Por que pedalar é um ato político

Artigo publicado na revista alemã Matices, edição 91 de março de 2017

Comecei a pedalar no dia a dia em São Paulo, Brasil, em 2007, quando obtive meu primeiro estágio e perdia mais de 4 horas por dia no transporte público ou carro. Em uma cidade de 12 milhões de habitantes era e ainda é muito comum você passar a maior parte do seu dia no congestionamento. Para ser mais específico, o(a) paulistano(a) perde em torno de 45 dias por ano no trânsito, segundo pesquisa do Ibope encomendada pela Rede Nossa São Paulo.

Tempo – Quando resolvi adotar a bicicleta em algumas das minhas rotinas, já estava completamente refém do trânsito. Sabia que ficava preso no congestionamento e por isso fui testar pela primeira vez ir de bicicleta. O benefício foi imediato – o mesmo trajeto ao estágio levou metade do tempo que de ônibus ou carro. Logo, identifico que a bicicleta tem um efeito fundamental para ganharmos aquilo que é de mais precioso e não tem preço – o tempo. E com isso vem o argumento da eficiência como o mais usado nas cidades que promovem a bicicleta de forma expressiva.

Não a tôa, pesquisas europeias mostram que, principalmente em distâncias até 6km, a bicicleta é o meio de transporte mais eficiente e rápido para ser usado e estimulado na cidade. Quando falamos de cidades com índices de congestionamento altos, como o caso de São Paulo, a bicicleta amplia ainda mais este raio de eficiência.

Foto: Felipe Baenninger/Projeto Transite

Saúde – Com o passar das semanas, o tempo foi superado pela saúde como fator fundamental para que eu adotasse a bicicleta com mais perenidade. Obviamente com relação ao preparo físico houve uma melhoria substancial, em especial pela disposição no trabalho. De fato, um estudo no Reino Unido da Cyclescheme mostrou que 82% de ciclistas entrevistados passaram a se sentir menos estressado(a)s após adotarem a bicicleta ao trabalho. O mesmo estudo comprovou que 62% das empresas entrevistadas disseram que incentivar o uso da bicicleta aumentou sua produtividade. Além disso, 20% da população brasileira é obesa e metade está acima do peso.  

Quando se fala em poluição do ar e inalação de gases poluentes, o fator saúde ao pedalar é menos óbvio. Mas a verdade é que até mesmo neste aspecto é mais benéfico estar em uma bicicleta do que dentro de um carro ou ônibus. Isso é o que demonstra várias pesquisas internacionais e mais recentemente um estudo da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. E isso eu senti na pele ao ver uma bronquite crônica acabar enquanto comecei a pedalar com frequência.

Ato político – Saúde e tempo foram argumentos importantes na minha trajetória com a bicicleta, mas mesmo assim, dadas as condições da cidade e a falta de acessibilidade e inclusão para a bicicleta, não me faria mudar de vez para este veículo se não fosse o terceiro elemento, o pedalar como ato político.

A partir das minhas primeiras pedaladas mudei minha percepção sobre aquela São Paulo apenas com carros e prédios e passei a enxergar possibilidades de experimentar a cidade de um jeito diferente, em cima da bicicleta. Isso significou conhecer novas ruas e caminhos, me dar conta de problemas básicos, como o acúmulo de lixo e enchentes nas ruas e perceber que estava em cima de um rio coberto, ou identificar verdadeiras barreiras geográficas para pedestres e ciclistas, em especial em comunidades pobres, para acessar os serviços que a cidade lhes oferece, em uma espécie de apartheid viário. Passei a questionar e me instigar mais pela cidade em que vivia e foi principalmente isso que me fez seguir pedalando.

Destas percepções passei a me engajar em grupos de discussão urbana, como o que participei de sua criação, o Coletivo Ecologia Urbana. Este coletivo tinha a finalidade de abordar as questões urbanas de forma ampla e sistêmica, questionando ecossistemas que foram criados nas cidades brasileiras, em especial em São Paulo. Um dos atos que participei com este coletivo, por exemplo, foi a uma intervenção com piquenique na inauguração da Ponte Estaiada, uma ponte onde só pode acessar carros, com custo de R$175 milhões e uma pilastra de suporte da ponte com o tamanho suficiente para ocupar toda uma praça que ali existia antes. No protesto, estendemos a placa “Rumo à meta 300km de engarrafamento”, quando os picos de congestionamento sinalizavam não mais que 200 km. Hoje, quase 10 anos depois, chegamos a picos de 700 km de engarrafamento em toda São Paulo.

Foto: JP Amaral

Uma prova global da bicicleta como ato política é a Massa Crítica, movimento no qual me envolvi na sequência e que existe em diversas partes do mundo. Sua proposta é gerar um encontro mensal de bicicleta para ocupar as ruas em forma de protesto. Como queríamos mais pessoas participando deste encontro, passamos a acompanhar aquele(a)s que tinham receio de pedalar para irem para estes protestos, bem como adotar a bicicleta no dia a dia. Para este ato de apoio a ciclistas iniciantes demos o apelido de Bike Anjo, remetendo ao fato de sermos anjos da guarda de novo(a)s ciclistas.

Do conceito simples do Bike Anjo me engajei junto a outros ciclistas a criar uma plataforma online (bikeanjo.org) para auxiliar mais pessoas a começarem a adotar a bicicleta. Hoje o Bike Anjo é uma rede de quase 6.000 ciclistas voluntário(a)s em 618 cidades e 28 países. Porém, o Bike Anjo faz mais do que ensinar pessoas a pedalar. É de fato um ato político, com a missão de mobilizar pessoas para transformar as cidades por meio da bicicleta. Dessa forma, reconhecemos na bicicleta uma ferramenta para gerar a mudança cultural e estrutural no meio urbano, a partir do momento que ela tem o potencial de criar movimentos e gerar uma rede a favor de cidades mais sustentáveis.

Como exemplo desta visão de usar a bicicleta como rede para transformar as cidades está a campanha Bicicleta nos Planos, desenvolvida pelo Bike Anjo, UCB – União de ciclistas do Brasil e Transporte Ativo, com apoio do iCS – Instituto Clima e Sociedade. A campanha tem o propósito de estimular essa rede de ciclistas por todo o Brasil para engajar e assessorar os municípios brasileiros a elaborarem e implementarem seus Planos de Mobilidade Urbana, instrumento previsto na Política Nacional de Mobilidade Urbana. E com esta campanha foi possível engajar mais de 20 cidades e observar mudanças estruturais promoção da bicicleta nas cidades, passando a se tornar uma política pública de verdade, como com a atuação da organização Mobicidade Salvador na capital baiana.

Foto: Ana Camila

Pedalar é, portanto, um ato político, mas como ela se insere na escala global sendo um tema principalmente tratado em políticas urbanas locais? Foi com esta intenção que participei a convite da Konrad-Adenauer-Stiftung do encontro “Young Global Changers” para o T20 Summit, um evento que junta as principais instituições de referência para políticas globais dos países G20. A bicicleta pouco foi citada nos debates, porém, várias discussões permearam o desenvolvimento urbano e a melhoria da qualidade de vida nas cidades como eixo fundamental para as soluções globais. Por outro lado, um documento global fundamental que traz a bicicleta entre seus pilares de mudança é a Nova Agenda Urbana, aprovado na conferência Habitat III para cidades sustentáveis da ONU e que deve nortear o desenvolvimento das cidades nos próximos 20 anos.

Foto: JP Amaral

Neste âmbito, a bicicleta se apresenta como uma solução transversal, não só se limitando à mobilidade urbana, mas expandindo à saúde, mudanças climáticas, inclusão social, acesso à educação e emprego, segurança viária e pública, entre outros eixos fundamentais para uma vida melhor. E é isso que se buscou demonstrar com o documento “Cycling Delivers on the Global Goals”, elaborado pela ECF – European Cyclists’ Federation e adaptado para o português pela UCB (ver AQUI), para demonstrar que a bicicleta contribui para vários dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável propostos pela ONU.

Portanto, fica a recomendação: encontre sua motivação para querer mudar o mundo e use a bicicleta como ferramenta.

 

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