A diva do Cicloativismo
Por Darlene Dalto
Renata Falzoni e seu cabelo vermelho são um acontecimento. Há muito tempo. De fora tem-se a impressão de que ela jamais perdeu um segundo na vida. Fotógrafa, já clicou Chico Buarque de Holanda pelado fazendo um freela para a Playboy no Festival de Cinema de Gramado, foi das primeiras videorrepórteres, fez trilhas, escalou, inventou eventos de mountain bike, foi candidata a vereadora e viajou o Brasil e o mundo de bicicleta, mais de 30 países… E é justamente o pedal que me interessa. Renata, 66 anos, é sinônimo de cicloativismo no país. É uma das pioneiras, começou nos anos 70, naquela São Paulo sem o tráfego de hoje, nem por isso mais amistosa. Durante essas quatro décadas pedalou praticamente todos os dias, com chuva ou sol. Menos agora por causa da pandemia. Sempre com a mesma alegria.
Em foto do Colégio Dante Alighieri, quando já andava de bicicleta
Ela se lembra bem como aprendeu a andar de bike, sozinha, aliás, no amplo quintal da casa de seus pais. Era seu aniversário de cinco anos e um dos presentes que ganhou foi justamente a desejada bicicleta só para ela. Mas com tantos primos na festa, teve que dividir o novo brinquedo. No dia seguinte bem cedo, ninguém acordado, pegou a bike esquecida em um canto da casa e não a largou até que conseguisse andar sem as rodinhas, sem cair. E conseguiu. Essa não era a primeira vez que tentava. Ela já sabia o caminho. Início de setembro de 1958. Um belíssimo presente de aniversário! Mas, é bom contar a história toda, o dia não terminou sem seu primeiro acidente: empolgadíssima com a nova bicicleta, em uma volta mais rápida, se esqueceu dos freios e deu com a cara no portão da casa. Felizmente sem gravidade.
Na adolescência começou a inventar: os amigos do bairro tinham todos uma bike e um cachorro. Mas de vez em quando alguém aparecia só com o cachorro – o pneu tinha furado e a bicicleta ficava, por um bom tempo, encostada. Não a dela. Renata logo quis entender aquela máquina. Comprou um kit para os consertos mais simples, como remendar os pneus, trocar a corrente, e garantiu os passeios, seus e dos amigos. Quando começou a faculdade, Arquitetura no Mackenzie, trocou quatro por duas rodas, passou a deixar o carro na garagem e ir de bike da Vila Madalena, onde morava, para Higienópolis, onde ainda fica a faculdade. Uns cinco quilômetros. Era 76, início do seu ativismo. Como não existiam bicicletários, logo se deparou com o primeiro contratempo, resolvido de alguma forma. A partir daí a bicicleta se tornou o seu meio de transporte oficial.
Com FHC em 1998, quando pedalou de Paraty a Brasília pela Campanha Bicicleta Brasil
Pedalar se tornou vital. Ela deixou de perder tempo e a paciência no trânsito, coisa que sempre detestou. Deixou de se preocupar com exercícios ou com a forma física. Se tornou sustentável, quando essa palavra nem existia: dá para imaginar a quantidade de gasolina que ela não usou? Quanto não poluiu? E a grana que economizou com combustível, estacionamento, IPVA, pneus, consertos e peças novas? “Costumo dizer que o carro seria um excelente guarda-chuva se não existisse trânsito. Mas o trânsito sempre piora quando chove, então, mesmo na chuva, uso a bicicleta. Basta ter a roupa adequada”. Pedalar também lhe trouxe boas ideias. “Em cima da bike oxigeno o cérebro, coloco a minha vida em dia, encontro soluções. É quase mágico”, diz.
Em 2008, em um pedal por Pequim, desvendando cada canto da capital chinesa sobre duas rodas
Renata sempre lutou pela valorização da bicicleta no país
Ela foi fotógrafa de grandes veículos, como a Folha, e pioneira na cobertura jornalística em bicicleta
Com o norte-americano Gary Fisher, conhecido por ser um dos inventores do Mountain Bike
Capa da Vejinha quando atuava como fotógrafa
Com os Night Biker´s, grupo que ela criou em 1989
Nos anos 80 criou o Night Biker´s, um animado grupo de ciclistas que se reunia todas as terças-feiras na frente da sua casa, ao lado do Ibirapuera, e a partir dali pedalava à noite pela cidade. Um programa e tanto. Participei de vários. Com a visibilidade que ganhou, foi parar na TV, na ESPN, onde durante quase 20 anos foi produtora, videorrepórter, apresentadora, editora e diretora do programa Aventuras com Renata Falzoni. Viajou e se divertiu muito: em um dia pedalou quase 150 km contra o vento na Patagônia, fez 1500 km de Paraty a Brasília, pedalou com Gary Fisher, o criador do mountain bike, em Portugal. Também ganhou uma identidade. A partir da ESPN ela não precisava mais se desculpar porque chegava às reuniões, muitas vezes com gente engravatada, vestindo bermuda, camiseta e tênis, de vez em quando a mão cheia de graxa. Era ciclista urbana, ativista, era quem queria ser.
Como ainda hoje, naquela época os ciclistas eram invisíveis. “Eram pessoas que moravam em bairros distantes, como a Mooca ou Santo Amaro, e trabalhavam no centro”, conta. A cidade poderia ter se modernizado com mais rapidez. “Temos menos ciclovias do que precisamos. No mundo inteiro centenas, milhares de cidades privilegiam as bicicletas tirando os carros das ruas, evitando trânsito, poluição etc. Sei que na prefeitura existem vários projetos de ciclovias, que não saem do papel. Quando se trata do poder público, é tudo muito demorado”, reclama. Mas não desanima. Ao contrário, ela sabe que o cicloativismo cresceu, tem hoje uma importante massa crítica e ela é parte desse crescimento.
Ao lado da neta Giulia, que aprendeu a pedalar com a avó
O seu carro? Continua na garagem e só sai de lá para passear com os netos. Sim, foi ela quem ensinou a filha Tatiana e os dois netos – Giulia, de 17, e Caio, de 10 – a andar de bike. “Nunca vou me esquecer da felicidade que era ver minha filha andando comigo, aqueles cabelos lindos, o sorriso dela”.
Há seis anos ela mantém um portal e um canal no YouTube chamado Bike é Legal, onde fala sobre esporte, mobilidade, cicloturismo e dicas. Também produziu e dirigiu os documentários “Bicicleta Brasil: Pedalar é um Direito”,”Elo Perdido – O Brasil que Pedala” e “Afuá – A cidade da Bicicleta”. Salve Renata!
Vida de Bike é uma parceria do ProColetivo e Bike Anjo.